
*Especial escrito por Leidiane Cruz, do Cimi
O ritual que é feito tradicionalmente em honra aos indígenas que morrem, aconteceu dessa vez em homenagem a um bispo católico, Dom Tomás Balduíno, entre os dias 26 e 28 de setembro, na Nova Aldeia Krahô, no município de Goiatins (TO). Jercília Krahô, uma das lideranças da aldeia e que considera Dom Tomás como um tio, decidiu ainda no velório do sacerdote dominicano no mês de maio, em público, que encerraria o luto em sua comunidade.

Povo Krahô se reúne durante celebração em homenagem a Dom Tomás (Foto: Gustavo Ohara)
Foi um fim de semana intenso, eram dezenas de pessoas dos estados de Goiás, Tocantins, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo, que partiam, ainda na madrugada de sexta (26), de Palmas para Nova Aldeia – uma distância de mais de 500 km. A estrada era ruim, fomos de carro até as margens do Rio Vermelho, e de lá atravessava-se de barco.
Ao chegar o final da tarde, naquelas margens, tendo a natureza como testemunha e o rio – que os indígenas têm como se fosse um pai -, partirmos ao encontro de Jercília Krahô e todo o seu povo, que nos aguardavam para participarmos desse momento de gratidão, respeito e profunda reflexão. E que exigia de todos, especialmente os não-índios presentes, toda a atenção dos olhares e pensamentos, pois o ambiente enchia a cada um de uma grande energia mística de um povo que tem um olhar muito além do que às vezes nos permitimos e somos capazes de enxergar.

Sob os olhares de jovens Krahô, rapaz tem o corpo pintado por uma índia (Foto: Gustavo Ohara)
Iniciamos a noite com um jantar que haviam nos preparado, bem diferente dos nossos de costume. A aprendizagem já se dava logo de início: comemos todo(a)s juntos(as) em grandes bacias. Uns sentados no chão, outros em bancos, outros em pé e a partilha acontecia. Era no meu coração o tão sonhado Reino de Deus: uma só mesa, um só espírito, todos movidos por amor àquele que dedicou sua vida na luta dos direitos dos pequenos, às minorias de nossa sociedade.
No dia seguinte, após o café da manhã, Jercília nos acolhia explicando que o ritual era o reconhecimento de gratidão que eles tinham a Dom Tomás, que ela o tinha como um tio e que esteve ao lado dos povos indígenas e camponeses, em suas lutas. Jercília trazia nas suas palavras que não era só uma homenagem do povo Krahô, mas de todos indígenas.“Dom Tomas morreu, fez sua agem, mas ele foi uma semente que brotou rápido, e jamais esquecerei o homem que abriu as portas dos ministérios pra mim, que nem sei ler”, disse. Durante esse momento, Dom Eugênio deu a Jercília uma das estolas de Dom Tomas, e uma cruz que ele gostava muito em forma de reconhecimento da importância que os indígenas tinham na vida de Dom Tomás.
A todo instante eu via o invisível tomar corpo. Os indígenas nos ensinavam, na prática, que não importam as nossas particularidades: somos uma só nação, embora sejam muitos os povos.

Como manda a tradição, índia corta o cabelo de criança para celebrar o fim do luto a Dom Tomás Balduíno (Foto: Gustavo Ohara)
Tudo ia acontecendo, nós não-indígenas não sabíamos a sequência, o tempo era o deles. Houve como parte do ritual o corte de cabelo, a retirada da barba, a pintura do corpo, a cantoria no pátio e a corrida de toras. Na madrugada de sábado para domingo, como uma espécie de sacrifício, amos a noite inteira no pátio. Adultos, idosos, jovens e crianças: uns deitados, outros sentados e durante toda a noite, sem cessar, houve cantoria. Estávamos todos em direção à Tora Grande, que ainda estava escondida na mata. Os cantos pareciam mantras que se repetiam preenchendo as lacunas do nosso ser, eram verdadeiras orações harmoniosas.
Na manhã de domingo, alguns indígenas foram até a mata pintar a Tora Grande. Depois que eles retornaram, dois grupos de homens e mulheres foram buscar, em forma de corrida, a Tora Grande. Ao chegarem com as Toras, levaram-nas para a casa de Jercília, forraram o chão com tecidos coloridos e pam as quatro Toras de buriti (uma árvore comum na região), que na cultura indígena simboliza o corpo e o fim do luto.

Mulheres choram a morte de Dom Tomás sentadas próximas às Grandes Toras (Foto: Dedel)
Sentadas próximas às toras, mulheres choravam a morte de Dom Tomás. Isso nos remetia à memória que Dom Tomás era, como membro do seu próprio sangue, presente ali em espírito. Diante das toras, algumas lideranças da comunidade e convidados puderam em palavras prestar sua homenagem ao bispo emérito da cidade de Goiás (GO). Após o choro, encerrou-se o luto. Houve em seguida uma cantoria que expressava a alegria de um povo que acredita que Dom Tomas está presente em nosso meio, e que eles não estarão sozinhos nas suas lutas diárias.
Essas cantorias faziam nosso coração vibrar, nos contagiavam de uma alegria que não se explica em palavras, mas se explodia de dentro pra fora em expressões de risos que transbordavam em distribuição gratuita.
*Leidiane Cruz tem 26 anos e trabalha como estagiária no Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Goiás|Tocantins. Além disso, é militante da Pastoral da Juventude na Diocese de Conceição do Araguaia, no Pará.