Jovens do Pé do Morro encenam a Via Sacra

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Na próxima semana, completarei três meses aqui no Pé do Morro (Aragominas, para os menos íntimos). Desde que cheguei aqui, ei a ter contato com a juventude. Jovens mais jovens do que sou, mas que fazem com que eu me sinta muito mais jovem do que sou.

A maioria desses adolescentes faz parte do grupo JUMP (Jovens Unidos Multiplicando Poder), que se reúne na Paróquia Nossa Senhora do Perpétuo Socorro – a única da cidade, e que está aos cuidados de Frei Marcos Belei e Frei Xavier Plassat, ambos Dominicanos.

Os encontros acontecem aos sábados à noite. Sempre é discutido algum tema atual ou um texto bíblico. O grupo, que tem cerca de 20 integrantes, já participou de formações sobre tráfico humano e trabalho escravo, temas da Campanha da Fraternidade. Em outra oportunidade eu conto mais sobre como as meninas e meninos demonstraram sua fé com obras em prol de uma comunidade mais acolhedora.

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Este texto é para falar sobre uma enorme responsabilidade que nós assumimos – e eu falo “nós” porque me sinto muito parte da vida deles, graças à maneira como fui recebido por todos. Há cerca de dois meses, ficou sob nossa tutela organizar e realizar a Via Sacra. Todos os anos, a morte e ressurreição de Cristo é encenada em um trecho que percorre grande parte da cidade. Quase toda comunidade volta os olhos para acompanhar a peça. Por isso, a responsabilidade de fazer um trabalho bonito era muito grande.

Momento da Via Sacra em que Jesus é levado a julgamento para Pilatos,

Momento da Via Sacra em que Jesus é levado a julgamento para Pilatos,

Meninas e meninos de 11 a 18 (ou 19?) anos se dividiram entre os papeis de Cristo, Maria, Maria Madalena, Verônica, Pilatos, Barrabás, Cireneu, soldados, ladrões, fariseus entre tantos outros personagens. Bravo como sou, atuei como soldado chefe.

Após receber a coroa de espinhos, Jesus começa a carregar a cruz.

Após receber a coroa de espinhos, Jesus começa a carregar a cruz.

Bem, os ensaios duraram cerca de 1 mês e meio. Praticamente todas as noites nos reunimos para ensaiar. Nem tudo saiu às mil maravilhas. Tivemos muitas brigas discussões, ausências, estresses… mas também foi possível identificar pessoas que até então estavam escondidinhas e conhecer diferentes habilidades de cada um. Todos esses momentos fazem parte do nosso amadurecimento como grupo, e é importante que saibamos usá-los para tal.

Durante toda quinta e na sexta pela manhã, preparamos os últimos detalhes para que tudo saísse direitinho. Tivemos a grande ajuda dos companheiros Jorginho e Juvenal, que já não são lá tão meninos, mas que fizeram parte do grupo de jovens alguns anos atrás. Por já terem organizado a Via Sacra anteriormente, eles nos auxiliaram a capinar o gramado onde seria realizada a crucificação, fizeram uma gambiarra para termos iluminação, ajudaram em toda “engenharia” para colocar as cruzes de uma maneira segura e em vários outros detalhes. Sem contar a ajuda do Evandro, que trabalha comigo na T e deu preciosas dicas de interpretação!

Na sexta-feira à tarde, após a celebração, era chegado o momento de mostrar à comunidade e, principalmente, a nós mesmos, o resultado de todo trabalho, de todo desgaste e aprendizado que tivemos até então. Era muito claro perceber os rostos ansiosos alguns minutos antes da encenação. Para mim, foi muito bom sentir a mesma ansiedade que eles. É esse nervosismo que nos faz sentir vivos e famintos por novos momentos como aquele.

E tudo deu muito certo! Óbvio que algumas coisas não saíram conforme ensaiado, erramos em algumas coisas, mas foi bonito perceber a capacidade que temos quando abraçamos a ideia e nos dispomos a vivê-la. Ao que pudemos perceber, a comunidade também ficou bastante satisfeita com a nossa performance.

Maria recebe o corpo de Jesus, após ser crucificado.

Maria recebe o corpo de Jesus, após ser crucificado.

Para finalizar com chave de ouro, replico abaixo o depoimento de dois integrantes do grupo: Maria Eduarda, que representou Maria Madalena e Eduardo Libanio, no papel de Pilatos.

Maria Eduarda, 14 anos:

Foi muito emocionante, divertido e gratificante de fazer. Ouvir os comentários positivos não tem preço. Rimos bastante nos ensaios, brigamos, discutimos, mas acho que vai deixar saudade. Tivemos dificuldades, principalmente por ser nossa primeira vez, mas tivemos o apoio e a colaboração de várias pessoas – algumas ajudaram demais mesmo.

Apesar das dificuldades e a falta de compromisso de alguns, ocorreu tudo bem. Rs. No dia da apresentação, acho que todos estavam nervosos. Eu, particularmente, estava muito nervosa, com aquele frio na barriga kkkk.

Mas… foi bom, foi legal de fazer 🙂 E que venham as próximas, mais e mais Vias Sacras e eventos para o grupo de jovens JUMP!

Eduardo Libanio, 18 anos:

Esta Via Sacra foi sem dúvida marcante, desde os momentos que amos nos ensaios e preparativos, até a hora da apresentação. Inicialmente falando sobre os ensaios, nossa, vão ser difíceis de esquecer! Era um ajudando o outro: “cara, melhora essa queda; as mulheres que choram podem ter mais emoção; ou isso ou aquilo ficaria melhor de outra forma”.

Quando faltava alguém, outro fazia seu papel no ensaio, mas cada um teve sua contribuição. Mesmo que algumas vezes se fugia da responsabilidade e objetivo havendo distração, logo se voltava a ensaiar. Foi assim se procedendo até chegar o dia do nosso grande espetáculo.

A ansiedade tomava conta de todos. Crescia-se o nervosismo: “será que vamos conseguir?”. Fizemos uma rápida reunião, na qual todos estavam em círculo e de mãos dadas. Com certeza amos energia uns para outros, o que acalmou-nos mais, e daí então partimos para apresentação. E a comunidade estava lá, nos esperando. “Galera, chegou a hora!”.

Na apresentação saímos todos bem e valeu a pena mesmo pelas dificuldades adas. Chamou-nos atenção também o fato de algumas pessoas ali chorando e muitos outros traços. Certamente, quem ainda não havia entendido, tanto do grupo como da comunidade, o real sentido daquilo naquele momento compreendeu o quão importante é. Não há nem palavras para explicar. Grande é o amor de Jesus por nós e isso é o que cada um vai levar consigo para sempre.

Jovens que participaram da encenação recebem os aplausos da comunidade.

Jovens que participaram da encenação recebem os aplausos da comunidade.

 

Dois dias com os índios Apinajé

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Nos dias 23 e 24 de março, tive a oportunidade de conviver dentro da Reserva Indígena dos Apinajé, em Tocantinópolis (TO). Mesmo antes de mergulhar nesses dois dias, era certo que essa experiência se tornaria um post para o blog.

Aldeia Abacaxi: uma das comunidades que compõem a Reserva Indígena Apinajé.

Aldeia Abacaxi: uma das comunidades que compõem a Reserva Indígena Apinajé.

No entanto, coloquei em mim mesmo uma grande responsabilidade antes e durante a escrita deste texto. E essa responsabilidade inclui retratar esses dois dias de uma forma respeitosa, o que significa – ao menos para mim – não exibir a figura indígena como coitada, atrasada ou qualquer clichê que facilmente encontramos por aí. E agi assim para, de alguma forma, poder retribuir o carinho, a atenção e a acolhida que recebi nas diversas aldeias pelas quais eu e alguns colegas pudemos visitar.

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O significado de um não-índio entrar e conhecer a vida daquela comunidade é algo imensurável. Quero dizer que é um ato de muita comunhão por parte dos índios disponibilizarem esse momento para quem não é indígena. Por isso reconheço e agradeço a confiança que eles nos depositaram ao permitir o contato com as crianças, idosos, adultos e lideranças.

Eu, frei Xavier (também da T) e Gaspar, cinegrafista da produtora Verbo Filmes, fomos guiados pela parceira Jucilene Gomes Correia, integrante do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Na verdade, fomos meio que como curiosos, pois Jucilene estava acompanhando dois jornalistas ses de uma revista infantil que circula por toda França. A ideia da matéria deles é mostrar às crianças sas como vivem as crianças indígenas brasileiras.

Antonio Veríssimo exibe a plantação de arroz da aldeia Areia Branca, onde vive com a família

Antonio Veríssimo exibe a plantação de arroz da aldeia Areia Branca, onde vive com a família

De um total de 26 aldeias que compõem a reserva, ficamos instalados na Areia Branca. O índio Antonio Veríssimo nos acompanhou durante os dois dias. Em todos os momentos, naturalmente ele compartilhava frações de sua sabedoria. Não somente sobre a vida indígena, mas também um lado politizado – tanto no cenário nacional quanto internacional – que atropelaria o discurso cansado de qualquer intelectual de sala de aula. Não impressiona que um índio seja tão inteligente, pois pensar isso seria colocá-lo como um inferior. Mas impressiona a inteligência do homem por si só, seja índio ou não.

Eis aí um grande clichê completamente desmantelado: índio só sabe dos segredos da natureza. Se eu estivesse em uma conversa na esquina, eu soltaria um palavrão para dizer que “nem f&*@$#o que as coisas são assim”.

A partir do contato com Antonio e outras lideranças – homens e mulheres -, percebi que a preocupação em estudar, buscar novos conhecimentos, manter-se atualizado e ligado nas mobilizações sociais que acontecem reserva afora é de boa parte deles. Como bem disse Antonio durante uma das nossas conversas, “eu cursei a universidade da vida, do cabo da enxada”. Em outro momento, lista os inúmeros livros que leu ultimamente, e demonstra a vontade de saber mais sobre a luta do povo africano.

Liderança e agricultura

Uma grande preocupação das lideranças das aldeias é garantir o sustento a partir de suas próprias plantações. Visitamos as roças de algumas aldeias, e a diversidade de alimentos plantados mostra que o trabalho tem sido bem desenvolvido. Mandioca é o foco principal, já que em algumas aldeias há casas de farinha instaladas. Mas também vimos muita abóbora, arroz, fava, milho, mamão entre outros.

E por falar em liderança, foi interessante perceber que muitos jovens têm assumido postos na linha de frente. Casado e com duas filhas pequenas, o presidente da associação que representa os Apinajé tem 24 anos. O braço direito do cacique de uma das aldeias tem somente 20 anos. Ele é o responsável por organizar o trabalho na roça; e isso inclui definir quem irá cuidar da plantação, quando e como. Para um grupo que aposta na agricultura como um modo de sobrevivência, encarar esse papel é um grande desafio.

Se depender das crianças Apinajé, futuro da seleção brasileira de natação e saltos ornamentais já está garantido.

Se depender das crianças Apinajé, futuro da seleção brasileira de natação e saltos ornamentais já está garantido.

Como cada aldeia é responsável por sua plantação, é parte da estratégia realizar mutirões para cuidar da roça. Isso inclui colocar as crianças para participar de alguma maneira deste costume. A partir daí, os caciques e cacicas começam a introduzir nos pequenos o senso de responsabilidade e cuidado com aquilo que estão fazendo. O que poderia ser chato para um grupo de 20 crianças e adolescentes, torna-se um momento de lazer, com brincadeiras, gozações e, claro, um banho de rio para recompensar o compromisso.

No caso da aldeia Areia Branca, quem coordena todo esse processo é uma cacica, escolhida pelos moradores da comunidade. Durante os dois dias, ela manteve-se sempre em contato com as crianças e jovens. Colhendo, descascando e moendo a mandioca. Fazendo artesanato com folhas secas. Cuidando das refeições. Participando de uma noite cultural, com a exibição de vídeos. O respeito à liderança feminina é compreendido por todos na aldeia.

Cacica da Areia Branca produz peças de artesanato com jovens da aldeia

Cacica da Areia Branca produz peças de artesanato com jovens da aldeia.

Tirar fotos bonitas é fácil

Esse tópico é apenas para destacar a beleza natural dos índios e índias, sejam jovens ou adultos. O olhar deles não fala. Grita, cativa, estremece! Por alguns momentos, um olhar curioso, desconfiado, sério, alegre, reservado.

Sem contar os diversos cortes de cabelo das meninas e dos meninos. Cada um de um jeito. O cuidado com o qual foram desenhados pelas tesouras está ali, estampado.

O sorriso fácil das crianças dá um nó na garganta. Que bom que elas existem. Que bom que elas são espontâneas. Por isso, ser fotógrafo é fácil.

Crianças se divertem brincando na casa de farinha

Crianças se divertem brincando na casa de farinha

Tinta é feita a partir do jenipapo; exposto ao sol, o fruto ganha a cor preta.

Tinta é feita a partir do jenipapo; exposto ao sol, o fruto ganha a cor preta.

Waxne

Na aldeia Abacaxi, participamos de um ritual (talvez eu possa nomear assim) muito bonito. Duas crianças receberam as tradicionais pinturas dadas aos guerreiros da tribo. Os chamados Waxne (lê-se Vainê). A tinta é feita a partir do jenipapo. Após ser ralada, o fruto é exposto ao sol por algumas horas. Isso escurece o material possibilita pintar o corpo com os mais belos traços. A tinta fica na pele por cerca de 15 dias (ou mais, dependendo do quanto você gosta de tomar banho).

Tive a honra de ganhar a pintura de um Waxne. Esse foi um dos momentos que mais me senti responsável por fazer um relato respeitoso sobre esse povo. A atenção e o cuidado com os quais a índia me pintava demonstrava que aquilo não era simplesmente pintar um corpo. Percebia-se um significado muito maior, pois penso que aquele momento era um empréstimo da cultura indígena a mim.

Num primeiro momento, a tinta fica clara. Mas, no dia seguinte, o preto fica mais forte e deixa o desenho mais bonito. Até hoje meu corpo continua com a pintura (apesar de eu gostar de banho).

Aldeias conectadas

A Associação das Aldeias Apinajé-Pempxà mantém um blog atualizado constantemente. O http://uniaodasaldeiasapinaje.blogspot.com.br/ é o canal utilizado para divulgar as ações realizadas pelas aldeias, os cursos de capacitação que eles recebem de entidades externas e, também, por onde são feitas denúncias de interesse do coletivo. Vale a leitura para quem deseja entender melhor quem são e pelo quê lutam os Apinajé.

 

A luta de Campos Lindos

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Muitas coisas têm me fascinado durante esses quase 30 dias que estou aqui no Tocantins. A comida, a cultura, o sotaque, as novas palavras adicionadas ao vocabulário, o relacionamento interpessoal, a rotina de trabalho, a natureza…

Vejo e vivo coisas novas a cada despertar, a cada refeição, a cada conversa despretensiosa. É muito bom estar aberto a essa enxurrada de informações. E é muito bom ser o cara de São Paulo com inúmeras gavetas vazias no cérebro dispostas a receber um dia a dia diferente.

Na última semana, junto com outros colegas da Comissão Pastoral da Terra (T), fiz uma viagem a Campos Lindos. A cerca de 500 km distante da capital Palmas, o município é o principal produtor de soja do Tocantins. A cidade também é dona do segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado. Uma contradição curiosa.

É em Campos Lindos que cerca de 80 famílias correm risco de serem despejadas de suas terras para dar lugar à soja (publicamos no início do mês um histórico mais apurado sobre o assunto). Para chegar à região em que estão essas e outras 80 famílias, percorremos mais de 70 km em estradas de terra cercados somente por soja. E nada mais.

(Assista abaixo ao vídeo com depoimentos de alguns moradores ameaçados de despejo)

O nosso destino era a casa da dona Rosária, estabelecida ali há décadas e uma das moradoras resistentes à chegada dos sojeiros. Debaixo de uma enorme árvore, mais ou menos 50 pessoas da comunidade se reuniram para uma missa celebrada por Dom Phillip Dickmans, Bispo de Miracema do Tocantins e Presidente do Regional norte 3 da CNBB, em solidariedade às famílias que correm risco de despejo. Também estiveram presentes, em apoio, as pastorais sociais que compõem a comissão de serviço da Caridade, da Justiça e da Paz: o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Pastoral Carcerária.

Na casa de taipa da dona Rosária, um mutirão preparava o almoço comunitário. Por causa das longas distâncias entre uma casa e outra, nem todos os moradores da região puderam marcar presença no encontro. Mas, além de assistir à celebração de uma missa, aquele era um momento importante de confraternização e fortalecimento da comunidade. Naquele punhado de horas que aram juntos, eles puderam renovar as esperanças de que algo diferente de uma reintegração de posse venha a acontecer.

Comunidade participa de missa celebrada pelo Bispo Dom Philip Dickmans.

Comunidade participa de missa celebrada pelo Bispo Dom Philip Dickmans.

Aos olhos de quem está de fora – e eu me incluo nesse bolo -, a iminência de um despejo como este pode parecer corriqueiro ou muito distante de sua individualidade. Mas são necessários somente alguns minutos ao lado daquelas pessoas que convivem diariamente com essa ameaça para você perceber o que significa para eles perder sua terra, sua casa, suas plantações, sua criação de animais, seus vizinhos, sua história.

Em qualquer conversa que você se envolva, é fácil perceber o medo e o sonho dos camponeses. Ainda que tão distintos, medo e sonho caminham lado a lado por cada pedaço de chão.

A esperança de manter suas terras, mesmo que prejudicadas e reduzidas por um enorme projeto de soja ao seu redor, é sustentada todos os dias no trabalho duro que dá vida às próprias plantações – de onde todos tiram o arroz, a mandioca, a melancia, o feijão e o milho que os alimentam.

Contrastando com o imenso plantio de soja, que devasta e expulsa uma diversidade de vida, tudo o que é cultivado pela comunidade é consumido na mesa de casa. Esse povo demonstra a todo instante que precisa apenas do seu pedaço de terra para viver. Nada que extravase o necessário para cuidar da roça.

“O que mais arrebenta o coração é saber que o direito nós tínhamos. Mas agora estão tirando de nós”, lamentou um dos camponeses na roda de conversa. As mãos calejadas, a sabedoria do campo, a fala simples e a acolhida sincera apenas evidenciam que eles não precisavam ar por isso. No papel de habitantes tradicionais da região, verdadeiros avós, pais, filhos, netos e sobrinhos daquelas terras, eles não mereciam ar por isso.

"Deserto de soja" toma conta do que antes era habitado por famílias tradicionais da região.

“Deserto de soja” toma conta do que antes era habitado por famílias de camponeses da região.

E se fosse sua família?

Da assessoria de comunicação da Comissão Pastoral da Terra Nacional

Cerca de 80 famílias camponesas atingidas pelo Projeto Agrícola Campos Lindos, no município de Campos Lindos, nordeste do Tocantins, correm risco iminente de despejo de suas terras pelo cumprimento de mandado de reintegração de posse em favor da Associação de Plantadores do Alto do Tocantins (Associação Planalto), representante de produtores de soja. A Polícia Militar já fez o reconhecimento de campo e apenas aguarda o efetivo necessário para realizar a ação. O Recurso de Apelação apresentado pelas famílias foi julgado em 29 de janeiro de 2014; por maioria, a 5ª Turma da 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Tocantins negou provimento.

Na ação, a Associação Planalto alega que as famílias invadiram a área de reserva em condomínio do projeto, o que estaria prejudicando sua regularização ambiental. No entanto, o que aconteceu foi o inverso: as famílias, que já ocupavam a área há décadas, foram desalojadas quando o projeto se instalou em 1997 e acabaram confinadas em sua área de reserva.

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Para sanar as dúvidas quanto ao tempo de permanência das famílias em suas posses, o Ministério Público Federal realizou laudo antropológico, concluído no último dia 28 de janeiro. Segundo o documento, “algum tempo após o início da implantação do Projeto Agrícola Campos Lindos, uma intensa mobilização das comunidades forçou o governo do Tocantins a reconhecer a existência destas pessoas e o fato delas estarem na região desde muito antes da chegada dos produtores de soja. É neste contexto que foi proposta a titulação de suas terras, por intermédio do Instituto de Terras do Tocantins (Itertins). A considerar o que observamos durante nossa estada na região, tal trabalho não foi efetivado de forma adequada: há uma quantidade razoável de famílias que foram ignoradas pelo cadastramento, em virtude da utilização de critérios questionáveis como considerar que pais e filhos que possuíam casas próximas uma da outra constituíam um único núcleo familiar e precisariam de uma única área para obter seu sustento”.

Conflitos e problemas ambientais
O Projeto Agrícola Campos Lindos foi criado em maio de 1997 por José Wilson Siqueira Campos, então governador do Tocantins, por meio do decreto 438/97. Em uma reforma agrária “às avessas” que consumou uma grilagem pública de terras, o estado desapropriou por improdutividade a antiga fazenda Santa Catarina – já titulada de forma controversa –, e distribuiu os mais de 90 mil hectares a fazendeiros, empresários e políticos, muitos deles bem conhecidos: a senadora Kátia Abreu e o ex-ministro da Agricultura de Itamar Franco, Dejandir Dalpasquale, estão entre os beneficiários que pagaram apenas 10 reais por hectare.

A implantação do projeto desconsiderou a existência de cerca de 160 famílias camponesas que, de forma comunitária, ocupavam o local havia mais de quatro décadas com produção diversificada, criando o gado solto e aproveitando o que o Cerrado oferecia. Suas áreas acabaram convertidas em reserva legal do projeto. Depois de muita pressão, aproximadamente 70 delas tiveram seus títulos concedidos, mas boa parte ainda ficou sem reconhecimento legal de suas posses. Apesar disso, continuaram na área reivindicando uma solução. Diariamente, convivem com a contaminação provocada pelo uso intensivo de agrotóxicos nas lavouras de soja.

Além dos conflitos relacionados à posse da terra, o projeto apresenta diversos problemas ambientais. Ele começou a funcionar sem apresentar o EIA/Rima e sem Licença Prévia do Naturatins (órgão estadual de licenciamento ambiental). Em 2000, o Ibama constatou diversas irregularidades, como desmatamento de grandes áreas sem autorização, inclusive de áreas de preservação permanente (APPs) na beira dos cursos d’água. O Ministério Público Federal entrou com ação civil pública contra o projeto, e Naturatins e Ibama impam condicionantes para o seu funcionamento. Em 2009, o Naturatins fez nova inspeção e confirmou a sobreposição de áreas de reserva legal com APPs. O imbróglio se arrasta sem solução e, ainda assim, o projeto nunca teve suas atividades embargadas.

Em fevereiro de 2013, em audiência pública realizada em Campos Lindos sobre a situação das famílias de posseiros e sobre os problemas ambientais, o Naturatins reconheceu que o projeto continua a funcionar sem licenciamento. A Defensoria Pública do Tocantins afirmou seu compromisso em atuar junto aos posseiros, que considera vítimas da expropriação encabeçada pelo estado. Nesta ocasião, o Ministério Público Federal designou um antropólogo para produzir um laudo a respeito das comunidades.

Trabalho escravo
Foi em uma fazenda do projeto que se deu o primeiro resgate de trabalho escravo do estado do Tocantins. Entre 2003 e 2013, foram identificados oito casos em Campos Lindos, seis deles em atividades ligadas à soja. Apenas três foram fiscalizados, com o resgate de 29 trabalhadores. O município de Campos Lindos é o maior produtor de soja do Tocantins e possui o segundo pior IDH do estado. A situação vivenciada pelas famílias impactadas pela soja torna seus filhos extremamente vulneráveis ao trabalho escravo.

Para saber mais: “Município do Tocantins lidera ranking de soja e de pobreza”.

Texto divulgado pela assessoria de imprensa da Comissão Pastoral da Terra (T) e publicado no site da entidade.

 

Notícias do Pé do Morro

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A ideia não é exatamente fazer um diário de bordo constante – até porque a rotina não permitirá tanta dedicação a isso -, mas vou tentar escrever aqui algumas impressões sobre a vida por esses cantos do Norte do Brasil.

Cheguei em Palmas na terça-feira (28), por volta de 10h30. No aeroporto, fui recepcionado pela companheira e Irmã Danize Mata. Carregado com ela, veio todo o carinho dos amigos do MJD-Porto. De lá, fomos para a rodoviária da cidade, de onde peguei um micro-ônibus com destino a Araguaína, distante cerca de 400km da capital – que mais parecem 800km graças às péssimas condições de conservação da BR-153 (ou BR Belém-Brasília).

Araguaína é a cidade onde está instalada a Comissão Pastoral da Terra (T), meu novo QG de trabalho. A população gira em torno de 150 mil habitantes. Agências bancárias, restaurantes, pizzarias e concessionárias de carros importados já estão instaladas por lá. As ruas são tão esburacadas quanto a rodovia. É preciso bastante perícia para desviar das crateras que estão por quase todo caminho.

Fim de tarde na Chácara da T, em Araguaína

Fim de tarde na Chácara da T, em Araguaína

Bem, cheguei em Araguaína por volta de 18h, e quem me recebeu por lá foi a Carol, com quem estou dividindo a casa. Meu novo endereço, aliás, fica a 40km de Araguaína, num pequeno vilarejo de 5 mil habitantes chamado oficialmente de Aragominas. Mas, para os íntimos, pode ser tratado apenas por Pé do Morro.

Logo no primeiro jantar fomos a um restaurante que vende espetinhos. O acompanhamento inclui arroz, feijão tropeiro, vinagrete e mandioca. Tudo bem caseiro, em grande quantidade e com sabor de comida da vó. Paguei a fortuna de R$ 5. A sobremesa saboreada foi um açaí poderoso. O sabor é bem diferente do que encontramos em SP; menos doce e mais vitaminado. A tigelona, que vale por um almoço e café da tarde, custou R$ 7. Posso dizer que dormi muito bem alimentado.

2º e 3º dias – quarta (29) e quinta (30)

Logo cedo fomos para a chácara da T, que fica a 10km de Araguaína. Um lugar maravilhoso, com floresta amazônica servindo de quintal. No rio Lontra, escondidinho em uma rápida trilha de 50m, corre uma água cristalina e de temperatura deliciosa para o banho. A sutil correnteza funciona como uma hidromassagem natural, sem custos e com direito a trilha sonora dos vários arinhos que por ali sobrevoam.

Águas cristalinas do Rio Lontra

Águas cristalinas do Rio Lontra

A chácara acolheu a equipe da T para uma reunião de planejamento e de acolhida aos novos integrantes do grupo: eu e Laudinha, estudante de História na Universidade Federal do Tocantins (UFT).

Intensa e recheada de novas informações, a reunião permitiu conhecer brevemente os mais de 30 grupos acompanhados/assessorados pela T. São centenas de famílias em situação vulnerável que lutam pelo seu pedaço de terra para morar e trabalhar. Brigas que percorrem anos e anos contra a burocracia, corrupção e violência de fazendeiros e grandes empresas agrícolas.

Na quinta-feira, segundo dia de reunião, terminamos de rever os grupos e de traçar os objetivos para o decorrer do ano. Feito isso, os agentes foram redistribuídos pelas comunidades assistidas. Como parte de um processo de reconhecimento de terreno, participarei do acompanhamento de 8 grupos – alguns em situação de aparente tranquilidade, mas outros em risco iminente de serem expulsos de suas terras.

Escultura feita por um artesão retratando os escravos: não é preto nem branco. é cinza, das cores dos fornos de carvão; os arames são as algemas dos grandes latifúndios

Escultura feita por um artesão retratando os escravos: não é preto nem branco. É cinza, das cores dos fornos de carvão; os arames são as algemas dos grandes latifúndios

Quase no fim da reunião, de forma anônima, uma arara e dois tucanos resolveram participar da conversa por alguns minutos. À noite voltamos de Araguaína para Aragominas. Pegar a estrada que liga os dois municípios à noite é tarefa apenas para os mais destemidos. Os vários buracos, a falta de sinalização e a inexistência de iluminação tornam o percurso uma aventura e tanto.

Por enquanto, o que fica é a ansiedade de ir logo a campo e começar a entender verdadeiramente a realidade que essas centenas de famílias enfrentam. A certeza é de que há muito trabalho a fazer e inúmeras coisas a aprender. Difícil saber como enfrentar essa enxurrada de novidades e problemáticas. Experimentar Deus nas coisas mais simples e me fazer humilde me parecem um bom começo.